terça-feira, 29 de março de 2011

Doce indiferença



            Deitada de bruços, a luz acesa mas totalmente alheia à luminosidade. Fazia uma hora, aproximadamente, que se encontrava naquela mesma posição e sua presença ou ausência, misturava-se ao calor do quarto. Luciana novamente pegou o telefone sabendo que esperaria aqueles demorados segundos em vão, não a atenderia. As certezas haviam se tornado em um “jogo de azar”, dependia da sorte em conseguir ou não falar com Carlos.
            Às vezes, ele atendia afetuoso e ela quase se enganava que os antigos tempos haviam voltado, outras vezes, na maioria das vezes, tocava, tocava, até cair na caixa postal, caso tivesse uma! O fato era que os tempos estavam difíceis e naquele instante comprovava como o destino pode ser inesperado.
            Foi para a sala, ligou a televisão para imediatamente colocá-la no silencioso, antiga mania de querer apenas a imagem, resguardar-se do barulho. Sentia-se sozinha; solidão específica. Queria estar com ele novamente, ver filmes, passear, brincar, comer, dormir e principalmente conversar sobre o dia-a-dia.
            Tentou ler um livro, lembrou-se dele. Como alguém consegue estar tão presente mesmo estando tão indiferente? Lembrou-se dos antigos tempos e percebeu o quanto eram mais difíceis para os dois! As perspectivas quanto ao futuro não existiam, mas o sentimento completava as lacunas. O que o calor de um abraço não é capaz de fazer?
            Muitas vezes o vazio torna-se gigantesco e parece sufocar, por isso abriu a janela “o vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos que tornei a viver contigo enquanto o vento passava” trecho de Cecília Meireles que comprova o quanto a efemeridade é exata. É inacreditável esta capacidade que o ser humano tem de consolar-se. Busca dentro de si justificativas para cada dor, cada mágoa, perdoa a falta de afeto e consola-se...
            Naquela noite, não foi diferente das outras longas noites: chorou um pouco, lamentou-se, tentou ligar, ligou a amiga TV, desligou-a, chorou e dormiu. Enquanto isso, em um outro extremo da cidade, um corpo cansado e produtivo atira-se à cama sem nenhuma lembrança!

sexta-feira, 18 de março de 2011

Segredo no quintal




            Olhou mais uma vez pela vidraça, os últimos pingos de  chuva agora batiam no vidro multicor e o frio penetrava pelas frestas da porta suja e empenada. Correu os olhos pela sala, teve o ímpeto de buscar a vassoura, pano, sentou-se pesadamente no sofá, sua respiração era pesada e doía-lhe o peito. Fechou os olhos, tentou esquecer pelo menos por alguns segundos, esboçou um meio sorriso. Uma lágrima traiçoeira saltou-lhe dos olhos ardentes. Reencostou-se no sofá, olhou para o alto, tentou achar uma melhor posição, virou-se para a porta, desistiu de levantar-se.
            Lá fora um barulho de crianças trazia as alegrias de uma tarde de domingo, a casa estava mergulhada no silêncio. Sentia fome, sede, a noite insone roubava-lhe as últimas energias. Dirigiu-se à cozinha, riu da ideia de tomar um copo de leite, que ironia seria alimentar-se.
            O vazio agora era sentido de um modo mais doloroso, morosamente os ponteiros do relógio contabilizavam a solidão daquele ambiente hostil. Sentiu um gosto amargo na boca e pela primeira vez sorriu. Seu corpo frágil apoiado na cadeira emoldurava uma cena romântica de uma moça pálida contrastantes com os seus olhos e cabelos negros. Líria sempre teve aquele susto nos olhos como se desculpasse de existir.
            Respirou fundo, parecia que iria abrir a porta, sair, mas sentia-se trancafiada e o desejo de abandonar-se sobrepujava sua fraca vontade de ser feliz.
            O barulho de sirene soou ao longe, arregalou os olhos e levantou-se instintivamente. Foi até o quarto e pegou algumas flores murchas num vaso e encaminhou-se ao pequeno quintal. Sorriu novamente, sentiu-se dona de si, independente e cheia de vida. Parou no parapeito da porta e olhou aquele pedaço de terra com familiaridade, jogou as flores no lixo, voltou-se, estremeceu e encaminhou-se ao banheiro.
            A água morna batia-lhe no rosto, acariciava a pele jovem e morena como um abraço reconfortante, cantarolou uma musiquinha medíocre que havia cantado há quinze horas atrás, não se lembrou de nada, queria esquecer, queria esquecer-se.
            Penteou o cabelo, vestiu um lindo vestido branco, respirou fundo, olhou no relógio, já era hora de trabalhar... riu... trabalhar novamente... quanto tempo não trabalhava... Olhou para o canto da cama onde havia uma foto pequena de um bebê, uma expressão sombria cobriu sua face, olhou para a porta e conseguiu visualizar um pedacinho do quintal mas não sentiu remorsos, a terra ainda estava remexida. Tudo isso iria passar, tudo sempre passaria, pegou o batom, apressou-se porque dessa vez passaria na farmácia, de agora em diante sempre estaria prevenida. Sorriu faceiramente, não admitiria mais “acidentes” frutos do seu trabalho, resolver aquele problema foi doloroso além de demorado, já se passavam doze meses.

sábado, 12 de março de 2011

Não é uma vovozinha



            Ela seria apenas mais uma senhora como tantas outras: viúva, muitos filhos, netos, uma vida pacata e uma velhice sem tantos luxos. Mas os acontecimentos tiraram-na da mediocridade para transformá-la numa respeitável matriarca de uma vida com tantas histórias difíceis. Abandonada pelo marido, criou os filhos “com a ajuda de Deus” como dizem as pessoas desta idade. Teve que trabalhar muito e suprir a falta que um pai faz. Anos mais tarde, acolheu não o ex-marido, mas o ex-pai, acompanhado da velhice, doença e penso eu,  também do arrependimento. Mais uma vez, reconstruiu sua cocha de retalhos.
            Há quem diga que um problema nunca vem sozinho e, na sua vida, isso não foi diferente. Bem cedo, um câncer veio fazer parte dos seus dias, corroer seu organismo mas nem ao de longe, conseguiu atingir seu equilíbrio. Não pensem vocês que farei a descrição de uma senhorinha decrépita, com aquela “vozinha” de algodão e aquele sorriso forçado de quem deve desempenhar o papel da boa vovó. Sua voz é firme como seus conceitos e todos a respeitam porque não é do tipo que manda recados. A sua vida, é mais que um simples respirar, toda ela é presença. É desta senhora, as notas de festa na confraternização em família, é dela também a última palavra em uma discussão descabida, não mais uma mulher, numa família de tantas fêmeas, é sim, a mais forte, a mais corajosa e admirável.
            Impossível não se apaixonar por ela, até o seu silêncio consegue resguardar notas de sabedoria e mesmo já com passos vacilantes, demonstra que o seu caminho ainda é comprido e não ocupa apenas um espaço no coração dos seus entes queridos, ela é a base em que todos eles se apóiam. Ledo engano quem a olha e reconhece uma mulher frágil, seus poros exalam vida, e se a disposição para os trabalhos domésticos a abandona gradativamente, o desejo de aproveitar a vida e tomar sua sagrada cervejinha persiste inabalável.
            Esses dias olhei para esta mulher e vi o quanto alguém pode ser tão amada, respeitada e incrivelmente cativante mesmo passando por tantos dissabores. Onde está o ar de abandono? O respirar oprimido do sofredor? E quanto a amargura de quem conviveu com a doença que lacera o corpo? Não enxerguei em seus olhos a sombra do medo e muito menos o arrependimento. Se esses sentimentos existiram algum dia para esta incansável mulher já fora, há muito, banido de sua alma. Não há espaço  para os cansaços de nossas falíveis figuras humanas, uma vez que consegue transcender o lago onde vive os miseráveis fracos que desistem ao ver o primeiro grande muro. Não sei quantas mulheres existem com toda esta intensidade, mas sei que, pelo menos uma, eu conheci e ela foi a responsável em formar o caráter de toda uma geração.
             

domingo, 6 de março de 2011

Eu, o cachorro e a mulher



          Parei no posto para calibrar os pneus do carro e enquanto o meu namorado verificava os pneus, deparei-me com uma mulher sentando-se no passeio com uma marmita no colo. Cabelos um pouco abaixo do queixo, um rosto encardido, blusa de frio e uma sombrinha que ela depositou ao lado. Um típico cachorro de rua sentou-se perto da mulher, um vira-lata de cor indefinida e esfomeado como todos os cachorros abandonados.
         Não conseguia desviar os olhos daquela cena: a mulher e o cachorro. Ela abriu a vasilha e com uma colher de plástico começou a devorar a comida. Vez por outra, pegava um pequeno pedaço de carne e dividia com o seu cúmplice: o cachorro. Percebi que a comida resumia-se a alguns pedaços de carne e muito arroz. Nunca consegui comer arroz puro, parece que sozinho não tem gosto de nada, mas a mulher comia colheradas e colheradas daquele arroz branco. O cachorro ficava ali, numa distância respeitosa esperando o pedaço de carne. Os movimentos eram automáticos e consistiam em vários colheradas de arroz, pegar um pedaço de carne e dividi-lo com o  cachorro.
         A noite estava nebulosa, o céu totalmente escuro e a chuva logo viria como antes. Talvez por isso, aquela mulher comia tão rápido, talvez morasse distante dali, ou mesmo precisaria procurar um lugar para se esconder. O que será que a levou para aquele lugar? Como seria a sua noite chuvosa?
         Senti um profundo desconforto, vi-me como integrante daquela cena e identifiquei-me. Não pensem que me identifiquei com a mulher, dela apenas compadeci-me, percebi-me no cachorro. Sim, aquele animal medíocre, cheio de nada que me surpreendeu porque quando a mulher deixou a vasilha ao lado, ele a comeu vorazmente. Nunca tinha visto um cachorro comer apenas arroz. Os meus cachorros sempre fuçaram a comida e descobriam apenas a carne, mas aquele não, comeu o restinho de arroz que sobrara.
         Quantos vezes alimentei-me de sobras, um restinho de vida que me lançavam, as migalhas de uma relação, o pão velho de uma companhia sem sentido. Inumeráveis dias em que sentei-me ao lado de alguém, de um jeito tão irracional quanto este canino e esperei o momento em que receberia algo.
         Fiquei alguns minutos em silêncio e quando saímos de lá, o meu namorado perguntou-me o que havia acontecido e como nunca conseguimos explicar o inexplicável, repeti o que normalmente respondo: nada.

sexta-feira, 4 de março de 2011

O dia em que fugi da chuva



          
Subi na moto como tantas vezes já havia feito, segurei-o não firmemente, apenas o suficiente para não despencar lá de cima e desabar no asfalto como um saquinho de água. Ele dirigia devagar como se fosse apenas mais um passeio, íamos para casa.
O céu começava a ficar escuro e algumas nuvens pressagiavam uma tempestade. Na garupa da moto, olhando fixamente à frente, vi os respingos de uma chuvinha passageira que estava prestes a nos pegar. Num lance rápido vi-o desviar do suposto caminho e buscar uma outra estrada, fiquei sem compreender no momento, foi como se, naquele instante, não soubesse exatamente o que estava acontecendo.
Ele então me disse que naquele lugar específico já estava chovendo, foi por isso que mudou de rota. Não consegui agüentar o riso. Senti uma sensação de poder instantâneo: pensem só, era como se ele escolhesse se molharia naquela chuva naquele dia, ou  deixaria para se molhar  depois. Ri como uma criança que acabou de fazer uma traquinagem e ainda não fora descoberta. Ele acelerou mais um pouquinho, afinal, a escolha de se molhar ou não, é eventual . O vento agora soprava mais forte e fui invadida por  um sentimento singular de liberdade.
Como eu gostaria de fugir mais vezes da chuva. Quantas vezes me vi em meio a grandes tempestades, sem ter nem ao menos uma velha sombrinha, misturei lágrimas com água e nem de longe conseguia vislumbrar um arco-íris. Algumas vezes, até pensei em ir embora com a enxurrada, intercalei rajadas de vento com trovoadas. Às vezes, os pingos nos batem como chicotadas e a intensidade de água no rosto nos impede de abrir os olhos. Em outros momentos, a humilhação de sermos atingidos pela lama, em alguma avenida da vida ,mancha a nossa raquítica esperança de dias melhores.
Mas não é somente das grandes tempestades que gostaria de fugir. Aquela chuvinha fina e persistente também já entristeceu meus dias. Você acha que consegue caminhar por ela, que quase não irá se molhar e quando vê está com frio incrustado na alma. Talvez seja uma das piores chuvas porque você a subestima, acha-a inofensiva. Já senti muita dor de ouvido recebendo estes respingos no rosto, fingimos não sentir dor mas o travesseiro sempre é o cúmplice anônimo desta história.
Seja uma chuva passageira ou uma tempestade, o certo é que um dia passa. Às vezes, temos que tirar o entulho abandonado pelo caminho, plantar novamente as nossas árvores, refazer a nossa morada, mas passa. Pode-se escolher ficar protegido dentro da casca quando se vê o céu nebuloso, mas para quem não tem medo de molhar e persiste em desafiar o mau tempo, há sempre a recompensa de dias ensolarados.