domingo, 27 de novembro de 2011

Sem razões

Já era tarde da noite quando aproximou-se de Carina. Ela, sentada sobre os pés já sabia o que haveria de ser dito, havia algum tempo em que o silêncio tornara-se intérprete da solidão mútua, incômoda, entre os dois.
Mauro perguntou-lhe se queria fazer algo diferente naquele final de semana, talvez visitar algum amigo, ou ir na casa de um velho parente. A sensação que Carina sentia ao ver aquele homem em sua frente era única: alguém tentando impedir que a tempestade entrasse por uma casa onde o telhado são apenas telhas velhas, espaçadas, gastas por vários verões e invernos.
A esposa respondeu negativamente com a cabeça e novamente o silêncio voltou a fazer-lhes companhia. Há muito, Mauro não sorria e as conversas eram sempre focados em fatos do cotidiano, a vida prática que infiltrava-se com seus tentáculos fortes e secos. Não havia mais nada a ser feito.
O pior é que, apesar da situação ser flagrante, Carina sofria. Já não mais aquele desespero em que a consumia durante horas em que o marido não chegava e ela fantasiava ou adivinhava o que ele estava fazendo. A dor agora era mansa, uma dor resignada que esperava o desfecho, o golpe de misericórdia.
Mauro estava sentado em um banco, do lado esquerdo do fogão e brincava com o crochê na barra do forro da mesa enquanto a mulher envelhecia olhando para o homem para quem jurara amor eterno e a qualquer momento sairia de sua vida.
Jantaram, ela lavou os talheres e ele empenhou-se em consertar duas gavetas estragadas da cômoda. Mais tarde, deitaram-se e como algumas vezes, tocaram-se, fundiram-se e se afastaram. Lá fora, um poste de luz foi danificado com uma batida de carro.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Doce amada

Antes de sair do quarto, fechou totalmente as cortinas, olhou para aquele corpo tão familiar, o braço direito jogado quase encontrando o chão, cabelos desgrenhados e um doce ar de sono profundo. Pensou em retornar e ajeitar a mulher na cama, mas mudou o seu intento ao ouvir a filha de nove anos chamando pela mãe.
Fechou a porta vagarosamente como se estivesse medo de fazer algum barulho, foi ao quarto da filha, pegou algumas roupas e disse-lhe que naquele dia não iria à escola e sim para a casa da avó.
Ao dirigir-se à cozinha, ouviu o celular de sua esposa tocando e correu ao quarto para atendê-lo. Não o encontrou, suava vertiginosamente e a pressa o impedia de imaginar onde o aparelho se encontrava, desistiu e retornou à cozinha. Arrumou um lanche rápido para a filha, tomou uma xícara de café velho e frio, sempre recostado no pilar.
A filha já estava pronta, a mochila nas costas e feliz pelo pai ter trocado a escola pela casa da avó, mas antes,disse que queria fazer um pedido para sua mãe. O pai, sempre prestimoso, consertou o macacão da pequena e afirmou-lhe que isso teria que ficar para depois porque sua mãe estava meio doente e iria dormir até tarde naquele dia. A filha, inocente, assentiu com a cabeça.
Colocou a filha no carro, voltou até a casa, pegou a mala que estava guardada dentro de guarda roupa e saiu, desta vez sem olhar para a esposa. Lá fora, o movimento já começava, as garagens se abrindo, crianças indo à escola, algumas senhoras varrendo as calçadas. Colocou os óculos escuros, ligou o rádio e enquanto tomava o caminho para a casa de sua sogra compassava as notas vindas do rádio com o polegar sobre o volante.
Depois de deixar a filha, pegou a estrada norte e vislumbrou uma grande reta. O dia seria bastante difícil, sua viagem duraria mais ou menos umas oito horas até a casinha de campo que alugara. Sem querer lembrou-se daqueles cabelos loiros, do pescoço de alabastro, do medo que viu nos olhos da amada, tão frágil, tão doce e agora inerte. Instintivamente, aumentou o volume do rádio e novamente o polegar acompanhava o ritmo da música, a estrada estendia-se ao longe.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Depois de anos, retorna...

Olhando para aquele homem de cabelos grisalhos, já alquebrado, olhar meio perdido, poucas palavras, gestos lentos, não imagina a sua história. Aliás, a idade devolveu-lhe o respeito dos entes queridos, mas há alguma nota na sua aparência sóbria que denuncia sua passagem intempestiva pela vida.
Fora um rapaz cheio de instintos e que cedeu a todos com prazer e por que não dizer, com ousadia. Há quem diga “o ponto de vista é a vista de um ponto” e por isso, para alguns, a sua trajetória resume-se em: um casamento, vários filhos, uma amante e uma escolha errada.
Por outro lado, pode-se dizer que ele escolheu a parte menos árdua da vida, isto enquanto teve escolha, lançou-se nos caminhos curvilíneos por considerá-los mais excitantes. Conheceu o outro lado da vida, deve ter sido feliz? Isso já é uma outra história! Ali, sentado, ocupando novamente o posto de patriarca da família, somem-se os questionamentos.
Mas há algo diferente nele, uma dignidade áspera, não sei se esta impressão é passada pelo seu esmero em seu modo de vestir ou no orgulho que ele transmite em pequenos instantes em que cruzarmos o seu olhar. O certo é que algo de sua natureza apaixonante, talvez responsável pelos seus arroubos juvenis, ainda está ali, mesmo em meio a velhice.
Instintivamente, olho seus sapatos e me surpreendo. Sapatos comuns, que nos seus pés adquirem um outro contorno. Não me chama a atenção a cor, detalhes, mas sim como o calçado completa aquela figura de homem vaidoso, elegante e de bom gosto. Tento imaginar como fora a sua história, se há arrependimentos de ter abandonado toda a sua família por uma aventura, todavia, é inútil tentar entender aquele narciso já doente e castigado.
Há um clima de devoção no ar e percebo que apesar de não recuperar o tempo perdido, conseguiu, ao menos, reconquistar o carinho dos filhos e netos. O silêncio o marca! E quantos aos gestos calmos? Não sei se são apenas os anos que lhes pesa no ombro ou trata-se apenas de abnegação.
O fato é que ele está ali, sentado, numa tarde de domingo, almoçando com a família, sendo reverenciado por seus entes queridos, e guardando uma história que a família prefere esquecer. Quanto a ele, as lembranças ainda perpassam sua mente? Acredito que o orgulho não abre margem para arrependimentos, e ademais, cumpre o seu papel de estar no meio dos seus quando der o último suspiro.

o meu desejo

O meu desejo

Não quero as vãs palavras, nem a insipidez do silêncio,
Não busco a certeza das mãos entrelaçadas, nem quero o sorriso distante de um adeus,
Alimento-me da doçura dos seus beijos, mas não quero a decisão do amanhã,
Não quero construir um futuro de estrelas, nem me perder na logicidade da razão.

O meu desejo é ouvir e obedecer a linguagem do meu corpo, perder-me no calor de seus abraço, confundir o meu prazer com o seu desejo.
Quero-o agora, a ternura do sussurro no ouvido, a magia dos toques inusitados e o encantamento do olhar despercebido.
Quero o aguçar de todos os sentidos, a tensão do desejo irrealizável, a procura do olhar ardente e o bater do coração descompassado.
Quero o amigo-amante que dê sentido aos devaneios fulgidios das minhas ilusões perfeitas, que clareie as minhas noites e dê brilho aos meus dias. Alguém especial que consiga ultrapassar o vazio da minha indiferença, desvendar os meus sentimentos mais obscuros e se apoderar do amor que tanto guardo.

Quero você: total e verdadeiro, simplesmente você: seu olhar, seu corpo, seus sentimentos, todos os seus mistérios, envolto numa brisa leve e ardente que afague e sacie os meus mais insanos desejos.

Um encontro e um desencontro

Naquela época, ele contava vinte e seis anos, abri o portão e o vi em uma moto, pediu para guardá-la afirmando que era o seu instrumento de trabalho, tinha medo de roubá-la. Guardou a moto, entrou em minha vida. A princípio, entregou a pipoca e a coca para um programa combinado naquela mesma noite: uma sessão de filme. Enquanto eu, desajeitadamente, preparava o lanche, ele se posicionou na porta, recostado, sem timidez. Conversávamos e ele ali, na pequena cozinha entre o vão da porta e o pequeno quintal. Hoje percebo que ele sempre esteve assim – um pouco dentro, um pouco fora – da minha vida.
Enfim, fomos assistir ao filme: “Sr. Sim.” Comendo pipoca, falando de coisas sérias, firmando laços numa noite de outubro, numa sexta-feira de coincidências. O som da televisão de nada atrapalhava, aliás nem notávamos que o filme já quase ia pelo meio enquanto a conversa animava-se, não era um encontro de corpos, era uma descoberta de almas. A noite finda e já cansados, despedimo-nos.
Outras noites vieram depois daquela, quanta pipoca meu Deus, quantos filmes... copos de coca-cola... As conversas sempre deram o tom, sempre fartas, diversificadas, cheias de puxões de orelha, sorrisos, acalento. Aos poucos vieram os toques, muitas vezes discretos como quem acaba de descobrir algo novo, outras vezes apaixonantes, e o amor veio como uma brisa, calma, pensada. Talvez tenha sido este o grande problema – pensar demais.
Quantas vezes, em silêncio desejei fazer uma loucura, convidá-lo para ir em um lugar desconhecido, fazer algo impensado, deixar que vislumbrasse o que, muitas vezes, meu senso de responsabilidade, insiste em guardar. Mas a vida para nós dois não era fácil, os problemas mesmo quando eram ignorados, insistiam em fazer-nos companhia.
Mas também houve flores, lírio, cheirinho de doce de leite ninho, vento batendo no rosto na garupa de uma moto, espuma de sabonete, perfumes misturados, pele, braços e abraços, bocas e gemidos, uísque e gelo... gelo... muito gelo... ao final de uma noite escura e fria em que o laguinho tornou-se mar enfurecido, levando os sorrisos e trazendo um choro compungido e inútil.
Olho pela janela e não mais vejo a moto. Às vezes, ainda sonho com ela, o seu barulho me faz adormecer em sonhos de “conchinha” e “peitão”. Como a vida é efêmera, como não conseguimos enxergar os sinais que a natureza tão sorrateiramente nos dá. Ele sempre foi um homem de encantamentos, o seu combustível é a paixão e como se trata de algo extremamente inflamável, queima, apaga-se, vira cinzas.
Aprendi apagar documentos sem ter que passar pela lixeira, final definitivo, mas inútil quando se trata das nossas fotos. Inúmeras vezes apertei delete para logo após, humilde e arrependida restaurá-las de novo. Ah! Aprendi a fazer isto também: restaurar. Estou restaurando alguns sonhos que eu havia colocado na gaveta, revendo alguns erros, desempoeirando certas ambições, acho melhor reconstruir do que derrubar tudo de uma só vez. Acredito que se há um alicerce forte, há sempre uma reforma possível.
Eu fico aqui, nesta noite, escrevendo esta crônica e quanto a ele, certamente está vivendo um novo encantamento, talvez assistindo a um outro filme, ou quem sabe até o mesmo (ele gosta de filme repetido), quem sabe dizendo as mesmas palavras que me disse outrora, mas com aquele mesmo sorriso e sempre no vão da porta.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A vida no espelho

Olhou mais uma vez para o espelho, virou-se de lado, tentou sorrir, mas automaticamente sentou-se na cama. O espelho antigo, desgastado, não parecia fiel à realidade; envelhecera mais do que havia ali refletido. Sua alma transformara-se num vazio e os seus olhos somente vislumbravam esse oco de vida. O choro já não vinha mais espontâneo como antes e os olhos enxutos negavam a correnteza de mágoa que apertava-lhe o peito.
Estava com câncer. Alguns dizem que esta doença é chamada de “mal de tristeza”, quando o corpo não consegue mais suportar os dissabores da vida, ele adoece, foi assim com ela. Mas naquele instante, não era a doença que a maltratava, era a decisão tomada que a fazia sentir calafrios.
Aluna brilhante nos tempos de escola, com um lindo namorado, uma boa situação financeira era o presságio para uma vida de poucos sobressaltos. No entanto, houve um tempo em que as subtrações suplantaram os ganhos, colecionou assim – fracassos.
Abandonou os estudos para cuidar do marido e dos filhos, resquício das famílias patriarcais, o marido a abandonara no declínio da vida e por fim, ela mesma abandonara-se.
Vivia só, numa casa alugada de paredes velhas e quintal bem arborizado e ameno. A calma que vinha lá de fora unia-se a sombra na janela do quarto e com isso, dormia tardes infindáveis de um sono sem fim, sempre acompanhada de alguns pequenos sustos e poucos sonhos.
Há muito criara uma vida de “Peter Pan” e sentia-se feliz em alguma terra do nunca. Passara os últimos dez anos lembrando-se da vida de outrora, revivendo os passeios com as crianças, recordando o ombro do marido, sentido cheiro de bolo de chocolate. No entanto, os anos passaram e cada um desses infindáveis dias, criaram no seu corpo alguns detalhes de sua passagem.
Levantou-se novamente e olhou o espelho. Tentou reconhecer aquela pessoa refletida, buscou alguma nota de alegria ou mesmo de tristeza, olhando atentamente, nada sentia. Esses sentimentos tão humanos também a abandonaram, somente o vazio, um profundo abismo que se formara dentro de si. Resignadamente, levantou-se e comunicou a sua decisão ao único filho que ainda restava:
- Não vou fazer nenhum tratamento.
Já eram quatro horas, abriu a janela, depositou a cabeça no travesseiro e adormeceu tranquila.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Segue-se o abandono

Era um casebre antigo, paredes rachadas, chão batido, cortinas que separavam três minúsculos cômodos. Lá fora, estendia-se um grande jirau onde reluziam algumas panelas lavadas com bucha e areia.
Neste ambiente rústico, moravam Carmem e Lúcio. Unidos mais pela necessidade do que por qualquer outro sentimento. Ela, depois que completara dezoito anos, teve que sair do abrigo. Quanto a ele, após a morte da mãe e da irmã, necessitava de alguém que lhe cosesse as camisas puídas e fizesse-lhe a marmita, acomodavam-se um ao outro.
Carmem tinha um espírito calmo como suas ações ao arrumar o barraco onde moravam. Os afazeres sempre feitos vagarosamente, estendiam-se durante toda a manhã e um pouco da tarde, mas ainda sobrava um tempo em que gastava fazendo infindáveis trancinhas de crochê.
Lúcio era dono de um espírito livre, um homem aventureiro e possessivo, pobre e ambicioso. Tentava sempre estar com pessoas influentes e não passava a ninguém um espírito subserviente, era um pobre diabo almejando as grandezas do Parnaso.
O tempo livre passava elaborando projetos mirabolantes que culminariam em riqueza fácil e certeira. A honestidade nascera com ele, no entanto, a vida foi adequando-a e por fim, sobrou apenas uma mirrada haste de decência. “Os fins justificam os meios” – repetia esse jargão como se fosse um achado de um grande filósofo. A vida seguia-se com alguns atropelos mas Carmem resistia aos dissabores.
Lúcio chegava a cada dia mais tarde, tratava a esposa, ora com indiferença, ora com animosidade; até que um dia, voltou para casa somente no domingo à tarde. Não havia panelas no jirau e não encontrou o crochê em cima da mesa como a esposa normalmente deixava quando se dedicava a outra atividade. Parecia tão óbvio, mas os olhos teimavam em não enviar a mensagem ao cérebro: ela fora embora.
Incrédulo, abriu a cômoda, o pequeno armário, enquanto um gosto acre saía pela garganta em uma saliva pegajosa que engolia novamente, sentiu-se um porco sendo sacrificado. Correu aos vizinhos que mal levantaram os olhos para lhes informar que a viram sair, sorrindo, com uma maleta. Não havia endereços, nem amigos a quem pudesse recorrer.
Depois de algumas horas, o abandono como uma praga, já havia tomado conta do seu corpo e a ideia do sorriso que a mulher supostamente exibia ao deixar o barraco corroía-lhe as vísceras.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Mancha de tomate

Um menino encardido,cabelo sujo e desalinhado,com vestindo uma blusa rota de time de futebol, remexe o lixo na porta de um verdurão.O cheiro forte de fruta perdida misturar-se ao suor do pequeno desgraçado e o sol quente transorma essa cena numa náusea repugnante, sinto nojo.
As mãozinhas ágeis escolhe o que dá para ser aproveitado e imediatamente separa tudo em uma sacolinha de plástico. Essas ações mecânicas vez por outra é quebrada quando o menino encontra uma fruta de dá-lhe um mordida, antes de colocá-la na sacola medíocre.
Tenho o impulso de ir até ele: perguntar-lhe o nome, a idade... mas a repugnância que sinto do cheiro que ele exala, sobrepõe-se à minha frágil solidariedade.
Tento apagar a cena, entrar e fazer minhas compras,no entanto, o meu olhar ainda se fixa no pequeno ser.
Vejo-o agora lançar fora um tomate podre e instintivamente passar a mão na camiseta imunda. A cor avermelhada fez uma grande mancha bem no meu de seu peito.
Ao ver o tomate sendo jogado fora do lixo, o dono do sacolão corre para repreender o pequeno intruso, o garoto foge como um cão que derruba uma lata de lixo, não olha para trás, esquece-se dos lados. O carro cinza sofre uma pequena bacada com aquele corpinho magricela. A multidão de curiosos se aglomera, não há o que fazer, morte instantânea. Não corro, ando devagar e me aproximo, a mancha de tomate na camisa, parece ter crescido.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Menino brilhante

Ele é apenas um menino, daqueles meninos que antes mesmo de praticarem qualquer travessura já se denunciam no olhar. No entanto, não é um menino travesso, por excelência, isso por que é imprevisível.
Moreno e sedutor, adjetivos que se combinam num penteado arrojado e num sorriso aberto e tranqüilo. Seria mais um menino do 9º ano se não fosse tão esperto e carismático.
A princípio, olheio-o com desconfiança, esta é a tarefa de um legítimo professor, aprendemos desde sempre a desconfiar. Mas o seu sorriso foi bem mais competente que as minhas aulinhas de português, cativou-me.
Russo, este é o seu apelido, é o que diríamos “ótimo aluno”, isto visto de um modo bem pessoal por uma professora que cisma em brincar com as palavras. Ele acompanha as aulas mas nunca deixa de ser ele mesmo
Um jeitinho meio malandro, conquistador e ao mesmo tempo preocupado com sua responsabilidade: eis o segredo do sucesso. O fato é que me apaixonei por ele. Daquelas paixões de professor que sonha em ver “um dia o seu discente ser reconhecido por todos”. É exatamente isto que eu espero. Quero que em algum dia, não muito distante, alguém me diga que o “Amoeba” é “o cara”. Isto mesmo, pode parecer estranho uma professora de português dirigir-se a um aluno desta maneira, mas infelizmente, quando a paixão desponta, o coração fala mais alto. Eu não desejo apenas que este garoto seja competente linguisticamente, desejo que seja feliz.
Aliás, desejo que os meus alunos consigam ultrapassar o verniz da palavra, alcançar a essência e mergulhar na exuberância que é ser o que se quer, sem medo, sem falsa hipocrisia.
Quantas vezes emaranhei-me por entre regras e encontrei o bálsamo para minha alma no vazio de uma página, na palavra não expressa ou mesmo no inusitado.
Lembro-me de uma certa vez em que ministrava cinqüenta aulas semanais para poder garantir o mínimo de minha dignidade e recebi um bilhete de uma aluna com o seguinte recado: “sinto falta do seu sorriso”! Desde este dia, passei a sorrir mais. Claro que trabalho menos por causa disto e, às vezes, faço verdadeiros malabarismos para que o salário chegue comigo até o fim do mês, no entanto sou mais feliz.
Mas voltando ao meu aluno, ou a minha nova paixão, quero que ele conserve a beleza da sua alma e a sua capacidade cognitiva. Quero que consiga aliar conhecimento e carisma. É muito bom vê-lo toda semana e imaginar a cada dia que sentirei muito orgulho desta figurinha daqui a alguns anos!

terça-feira, 19 de abril de 2011

Abandono

Cruzou as mãos e olhou o garoto brincando no quintal. Era engraçado como ele empurrava o carrinho por entre obstáculos imaginários reproduzia os sons, brincando de fazer realidade.
Consultou mais uma vez o relógio, já passava das seis e a mulher descascava legumes, sentada no sofá da sala, vendo televisão. Permaneceu ali, por mais alguns instantes. Abriu a geladeira e lá estava o pudim de leite condensado. Sem vontade, pegou um pratinho, uma colher e digeriu aquela massa doce e úmida. Tomou um copo de água gelada e foi para o quarto.
Como sentiu vontade de abrir o guarda-roupa mas deteve-se, não deveria ser imprudente, a sensatez e o cálculo sempre o acompanharam, não colocaria tudo a perder agora. Ouviu a mulher lhe chamando e como das outras vezes, primeiro fingiu não ouvir e depois a atendeu solícito, como era de costume. Ela pediu que ele desligasse o arroz que estava no fogão e foi exatamente isso que ele fez, desligou tudo, inclusive o fogão.
Um risinho nervoso saiu dos seus lábios e a mulher o inquiriu sobre o ocorrido, as mentiras saltavam-lhe da boca, a mulher acreditou. O menino veio do quintal correndo e o abraçou inesperadamente. As mãozinhas sujas de terra amassaram sua calça e ele nem pensou em detê-lo, apenas perguntou o que era. A criança apontou para o quintal e disse que no meio da terra havia um bicho. Vestiu-se de pai e foi ver o que era. Uma minhoquinha estava ali. O homem, de aparência calma, retirou aquele “bicho” da terra e deu uma aula de biologia para o seu protegido.
Passados alguns momentos, a mãe chega para levar a criança para tomar banho e avisa que o janta rlogo ficará pronto. Antes de dar as costas ao marido, lembra-o de que na quinta-feira é o casamento de sua sobrinha e que precisam compra o presente. Ele apenas acena com a cabeça.
A mulher sai carregando a criança, ao mesmo tempo em que lhe tira a roupa. Ao vê-la fechar a porta, vislumbrou a oportunidade que faltava. Olhou mais uma vez para o banheiro, voltou para o quarto, pegou as chaves, a carteira e saiu rapidamente. Depois de alguns quilômetros, olhando a bagagem cuidadosamente colocada dentro do carro, algumas horas antes, enquanto a esposa buscava o filho na pré-escola foi que se arrependeu, deveria ter jantado antes de ir embora.


Abandono

Cruzou as mãos e olhou o garoto brincando no quintal. Era engraçado como ele empurrava o carrinho por entre obstáculos imaginários reproduzia os sons, brincando de fazer realidade.
Consultou mais uma vez o relógio, já passava das seis e a mulher descascava legumes, sentada no sofá da sala, vendo televisão. Permaneceu ali, por mais alguns instantes. Abriu a geladeira e lá estava o pudim de leite condensado. Sem vontade, pegou um pratinho, uma colher e digeriu aquela massa doce e úmida. Tomou um copo de água gelada e foi para o quarto.
Como sentiu vontade de abrir o guarda-roupa mas deteve-se, não deveria ser imprudente, a sensatez e o cálculo sempre o acompanharam, não colocaria tudo a perder agora. Ouviu a mulher lhe chamando e como das outras vezes, primeiro fingiu não ouvir e depois a atendeu solícito, como era de costume. Ela pediu que ele desligasse o arroz que estava no fogão e foi exatamente isso que ele fez, desligou tudo, inclusive o fogão.
Um risinho nervoso saiu dos seus lábios e a mulher o inquiriu sobre o ocorrido, as mentiras saltavam-lhe da boca, a mulher acreditou. O menino veio do quintal correndo e o abraçou inesperadamente. As mãozinhas sujas de terra amassaram sua calça e ele nem pensou em detê-lo, apenas perguntou o que era. A criança apontou para o quintal e disse que no meio da terra havia um bicho. Vestiu-se de pai e foi ver o que era. Uma minhoquinha estava ali. O homem, de aparência calma, retirou aquele “bicho” da terra e deu uma aula de biologia para o seu protegido.
Passados alguns momentos, a mãe chega para levar a criança para tomar banho e avisa que o janta rlogo ficará pronto. Antes de dar as costas ao marido, lembra-o de que na quinta-feira é o casamento de sua sobrinha e que precisam compra o presente. Ele apenas acena com a cabeça.
A mulher sai carregando a criança, ao mesmo tempo em que lhe tira a roupa. Ao vê-la fechar a porta, vislumbrou a oportunidade que faltava. Olhou mais uma vez para o banheiro, voltou para o quarto, pegou as chaves, a carteira e saiu rapidamente. Depois de alguns quilômetros, olhando a bagagem cuidadosamente colocada dentro do carro, algumas horas antes, enquanto a esposa buscava o filho na pré-escola foi que se arrependeu, deveria ter jantado antes de ir embora.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Menina tansparente

No recreio, sentava-se bem perto da porta para que quando batesse o sinal, pudesse retornar com mais rapidez. Era a única menina que usava saias ao invés de calça comprida, coisa da religião de sua mãe. A diferença com as outras meninas não se resumia ao vestuário, mas também no cabelo comprido, despontado, opaco e sempre ajeitada em um “rabo de cavalo” por causa do grande calor. Vívian era silenciosa, passava a maior parte do tempo de cabeça baixa tentando não ouvir as novas piadinhas a seu respeito ou concentrando-se nos estudos. Havia uma beleza nesta menina porém estava muito bem escondida! Os pais a educaram numa religião severa de usos e costumes bem diferentes do que pode ser considerado aceitável, e a vida, em grupo, conseguia exercer ainda mais severidade em sua alma. Não tinha amigos, apenas condescendentes. Algumas meninas sentiam pena daquela garota embolorada que parecia mais uma superfície rasa, ela era quase transparente.
Naquela quarta-feira havia educação física. Enquanto tentava ajeitar o short no banheiro, Vívian ouviu algumas meninas falando sobre ela. Nada de novo, apenas os mesmo comentários tecidos com muito sarcasmo, doses de crueldade e por que não, humor. Falaram que ela deveria ter vergonha de sair na rua com aquele seu cabelo comprido de crente fanática, e quanto às saias compridas? Riram como se o comentário fosse uma piada. Falaram do seu olhar de submissão e desculpas e finalizaram dizendo que pelo menos as suas boas notas mostravam que ela era um pouco humana.
Saiu do banheiro e lançou-se sobre as meninas ciente de que iria apanhar muito. Bateu como pode, entretanto nascera para ser pisoteada. As unhas arrancavam a sua pele como um papelzinho frágil, seu rosto ficou totalmente vermelho, os cabelos, agora soltos, pareciam pertencer a algum personagem de filme de terror. Com a confusão, sua saia puída rasgou-se e as lágrimas doíam naquele rosto tão machucado de perdedora.
Claro que foi suspensa, seu pai a veio buscar, ficou de castigo, levou sermão e não tentou se justificar. Sentia raiva. Pela primeira vez sentiu brotar o lado ruim que veio junto da vergonha, da mágoa e da desilusão. Olhou para o espelho e viu a mãe anos mais nova. Sentiu ódio dos pais, da igreja, de Deus. Queria que as pessoas gostassem dela ou pelo menos que a respeitassem. Abriu o guarda-roupa e viu as outras saias espreitando-a, ouviu as vozes de “não pode isso”, “não pode aquilo”, sentiu vontade de morrer. E naquela noite foi realmente isto que aconteceu. Pegou a tesoura, cortou o cabelo, terminou de rasgar a saia que estava vestindo e por fim, rasgou toda a sua obediência.

terça-feira, 29 de março de 2011

Doce indiferença



            Deitada de bruços, a luz acesa mas totalmente alheia à luminosidade. Fazia uma hora, aproximadamente, que se encontrava naquela mesma posição e sua presença ou ausência, misturava-se ao calor do quarto. Luciana novamente pegou o telefone sabendo que esperaria aqueles demorados segundos em vão, não a atenderia. As certezas haviam se tornado em um “jogo de azar”, dependia da sorte em conseguir ou não falar com Carlos.
            Às vezes, ele atendia afetuoso e ela quase se enganava que os antigos tempos haviam voltado, outras vezes, na maioria das vezes, tocava, tocava, até cair na caixa postal, caso tivesse uma! O fato era que os tempos estavam difíceis e naquele instante comprovava como o destino pode ser inesperado.
            Foi para a sala, ligou a televisão para imediatamente colocá-la no silencioso, antiga mania de querer apenas a imagem, resguardar-se do barulho. Sentia-se sozinha; solidão específica. Queria estar com ele novamente, ver filmes, passear, brincar, comer, dormir e principalmente conversar sobre o dia-a-dia.
            Tentou ler um livro, lembrou-se dele. Como alguém consegue estar tão presente mesmo estando tão indiferente? Lembrou-se dos antigos tempos e percebeu o quanto eram mais difíceis para os dois! As perspectivas quanto ao futuro não existiam, mas o sentimento completava as lacunas. O que o calor de um abraço não é capaz de fazer?
            Muitas vezes o vazio torna-se gigantesco e parece sufocar, por isso abriu a janela “o vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos que tornei a viver contigo enquanto o vento passava” trecho de Cecília Meireles que comprova o quanto a efemeridade é exata. É inacreditável esta capacidade que o ser humano tem de consolar-se. Busca dentro de si justificativas para cada dor, cada mágoa, perdoa a falta de afeto e consola-se...
            Naquela noite, não foi diferente das outras longas noites: chorou um pouco, lamentou-se, tentou ligar, ligou a amiga TV, desligou-a, chorou e dormiu. Enquanto isso, em um outro extremo da cidade, um corpo cansado e produtivo atira-se à cama sem nenhuma lembrança!

sexta-feira, 18 de março de 2011

Segredo no quintal




            Olhou mais uma vez pela vidraça, os últimos pingos de  chuva agora batiam no vidro multicor e o frio penetrava pelas frestas da porta suja e empenada. Correu os olhos pela sala, teve o ímpeto de buscar a vassoura, pano, sentou-se pesadamente no sofá, sua respiração era pesada e doía-lhe o peito. Fechou os olhos, tentou esquecer pelo menos por alguns segundos, esboçou um meio sorriso. Uma lágrima traiçoeira saltou-lhe dos olhos ardentes. Reencostou-se no sofá, olhou para o alto, tentou achar uma melhor posição, virou-se para a porta, desistiu de levantar-se.
            Lá fora um barulho de crianças trazia as alegrias de uma tarde de domingo, a casa estava mergulhada no silêncio. Sentia fome, sede, a noite insone roubava-lhe as últimas energias. Dirigiu-se à cozinha, riu da ideia de tomar um copo de leite, que ironia seria alimentar-se.
            O vazio agora era sentido de um modo mais doloroso, morosamente os ponteiros do relógio contabilizavam a solidão daquele ambiente hostil. Sentiu um gosto amargo na boca e pela primeira vez sorriu. Seu corpo frágil apoiado na cadeira emoldurava uma cena romântica de uma moça pálida contrastantes com os seus olhos e cabelos negros. Líria sempre teve aquele susto nos olhos como se desculpasse de existir.
            Respirou fundo, parecia que iria abrir a porta, sair, mas sentia-se trancafiada e o desejo de abandonar-se sobrepujava sua fraca vontade de ser feliz.
            O barulho de sirene soou ao longe, arregalou os olhos e levantou-se instintivamente. Foi até o quarto e pegou algumas flores murchas num vaso e encaminhou-se ao pequeno quintal. Sorriu novamente, sentiu-se dona de si, independente e cheia de vida. Parou no parapeito da porta e olhou aquele pedaço de terra com familiaridade, jogou as flores no lixo, voltou-se, estremeceu e encaminhou-se ao banheiro.
            A água morna batia-lhe no rosto, acariciava a pele jovem e morena como um abraço reconfortante, cantarolou uma musiquinha medíocre que havia cantado há quinze horas atrás, não se lembrou de nada, queria esquecer, queria esquecer-se.
            Penteou o cabelo, vestiu um lindo vestido branco, respirou fundo, olhou no relógio, já era hora de trabalhar... riu... trabalhar novamente... quanto tempo não trabalhava... Olhou para o canto da cama onde havia uma foto pequena de um bebê, uma expressão sombria cobriu sua face, olhou para a porta e conseguiu visualizar um pedacinho do quintal mas não sentiu remorsos, a terra ainda estava remexida. Tudo isso iria passar, tudo sempre passaria, pegou o batom, apressou-se porque dessa vez passaria na farmácia, de agora em diante sempre estaria prevenida. Sorriu faceiramente, não admitiria mais “acidentes” frutos do seu trabalho, resolver aquele problema foi doloroso além de demorado, já se passavam doze meses.

sábado, 12 de março de 2011

Não é uma vovozinha



            Ela seria apenas mais uma senhora como tantas outras: viúva, muitos filhos, netos, uma vida pacata e uma velhice sem tantos luxos. Mas os acontecimentos tiraram-na da mediocridade para transformá-la numa respeitável matriarca de uma vida com tantas histórias difíceis. Abandonada pelo marido, criou os filhos “com a ajuda de Deus” como dizem as pessoas desta idade. Teve que trabalhar muito e suprir a falta que um pai faz. Anos mais tarde, acolheu não o ex-marido, mas o ex-pai, acompanhado da velhice, doença e penso eu,  também do arrependimento. Mais uma vez, reconstruiu sua cocha de retalhos.
            Há quem diga que um problema nunca vem sozinho e, na sua vida, isso não foi diferente. Bem cedo, um câncer veio fazer parte dos seus dias, corroer seu organismo mas nem ao de longe, conseguiu atingir seu equilíbrio. Não pensem vocês que farei a descrição de uma senhorinha decrépita, com aquela “vozinha” de algodão e aquele sorriso forçado de quem deve desempenhar o papel da boa vovó. Sua voz é firme como seus conceitos e todos a respeitam porque não é do tipo que manda recados. A sua vida, é mais que um simples respirar, toda ela é presença. É desta senhora, as notas de festa na confraternização em família, é dela também a última palavra em uma discussão descabida, não mais uma mulher, numa família de tantas fêmeas, é sim, a mais forte, a mais corajosa e admirável.
            Impossível não se apaixonar por ela, até o seu silêncio consegue resguardar notas de sabedoria e mesmo já com passos vacilantes, demonstra que o seu caminho ainda é comprido e não ocupa apenas um espaço no coração dos seus entes queridos, ela é a base em que todos eles se apóiam. Ledo engano quem a olha e reconhece uma mulher frágil, seus poros exalam vida, e se a disposição para os trabalhos domésticos a abandona gradativamente, o desejo de aproveitar a vida e tomar sua sagrada cervejinha persiste inabalável.
            Esses dias olhei para esta mulher e vi o quanto alguém pode ser tão amada, respeitada e incrivelmente cativante mesmo passando por tantos dissabores. Onde está o ar de abandono? O respirar oprimido do sofredor? E quanto a amargura de quem conviveu com a doença que lacera o corpo? Não enxerguei em seus olhos a sombra do medo e muito menos o arrependimento. Se esses sentimentos existiram algum dia para esta incansável mulher já fora, há muito, banido de sua alma. Não há espaço  para os cansaços de nossas falíveis figuras humanas, uma vez que consegue transcender o lago onde vive os miseráveis fracos que desistem ao ver o primeiro grande muro. Não sei quantas mulheres existem com toda esta intensidade, mas sei que, pelo menos uma, eu conheci e ela foi a responsável em formar o caráter de toda uma geração.
             

domingo, 6 de março de 2011

Eu, o cachorro e a mulher



          Parei no posto para calibrar os pneus do carro e enquanto o meu namorado verificava os pneus, deparei-me com uma mulher sentando-se no passeio com uma marmita no colo. Cabelos um pouco abaixo do queixo, um rosto encardido, blusa de frio e uma sombrinha que ela depositou ao lado. Um típico cachorro de rua sentou-se perto da mulher, um vira-lata de cor indefinida e esfomeado como todos os cachorros abandonados.
         Não conseguia desviar os olhos daquela cena: a mulher e o cachorro. Ela abriu a vasilha e com uma colher de plástico começou a devorar a comida. Vez por outra, pegava um pequeno pedaço de carne e dividia com o seu cúmplice: o cachorro. Percebi que a comida resumia-se a alguns pedaços de carne e muito arroz. Nunca consegui comer arroz puro, parece que sozinho não tem gosto de nada, mas a mulher comia colheradas e colheradas daquele arroz branco. O cachorro ficava ali, numa distância respeitosa esperando o pedaço de carne. Os movimentos eram automáticos e consistiam em vários colheradas de arroz, pegar um pedaço de carne e dividi-lo com o  cachorro.
         A noite estava nebulosa, o céu totalmente escuro e a chuva logo viria como antes. Talvez por isso, aquela mulher comia tão rápido, talvez morasse distante dali, ou mesmo precisaria procurar um lugar para se esconder. O que será que a levou para aquele lugar? Como seria a sua noite chuvosa?
         Senti um profundo desconforto, vi-me como integrante daquela cena e identifiquei-me. Não pensem que me identifiquei com a mulher, dela apenas compadeci-me, percebi-me no cachorro. Sim, aquele animal medíocre, cheio de nada que me surpreendeu porque quando a mulher deixou a vasilha ao lado, ele a comeu vorazmente. Nunca tinha visto um cachorro comer apenas arroz. Os meus cachorros sempre fuçaram a comida e descobriam apenas a carne, mas aquele não, comeu o restinho de arroz que sobrara.
         Quantos vezes alimentei-me de sobras, um restinho de vida que me lançavam, as migalhas de uma relação, o pão velho de uma companhia sem sentido. Inumeráveis dias em que sentei-me ao lado de alguém, de um jeito tão irracional quanto este canino e esperei o momento em que receberia algo.
         Fiquei alguns minutos em silêncio e quando saímos de lá, o meu namorado perguntou-me o que havia acontecido e como nunca conseguimos explicar o inexplicável, repeti o que normalmente respondo: nada.