quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A vida no espelho

Olhou mais uma vez para o espelho, virou-se de lado, tentou sorrir, mas automaticamente sentou-se na cama. O espelho antigo, desgastado, não parecia fiel à realidade; envelhecera mais do que havia ali refletido. Sua alma transformara-se num vazio e os seus olhos somente vislumbravam esse oco de vida. O choro já não vinha mais espontâneo como antes e os olhos enxutos negavam a correnteza de mágoa que apertava-lhe o peito.
Estava com câncer. Alguns dizem que esta doença é chamada de “mal de tristeza”, quando o corpo não consegue mais suportar os dissabores da vida, ele adoece, foi assim com ela. Mas naquele instante, não era a doença que a maltratava, era a decisão tomada que a fazia sentir calafrios.
Aluna brilhante nos tempos de escola, com um lindo namorado, uma boa situação financeira era o presságio para uma vida de poucos sobressaltos. No entanto, houve um tempo em que as subtrações suplantaram os ganhos, colecionou assim – fracassos.
Abandonou os estudos para cuidar do marido e dos filhos, resquício das famílias patriarcais, o marido a abandonara no declínio da vida e por fim, ela mesma abandonara-se.
Vivia só, numa casa alugada de paredes velhas e quintal bem arborizado e ameno. A calma que vinha lá de fora unia-se a sombra na janela do quarto e com isso, dormia tardes infindáveis de um sono sem fim, sempre acompanhada de alguns pequenos sustos e poucos sonhos.
Há muito criara uma vida de “Peter Pan” e sentia-se feliz em alguma terra do nunca. Passara os últimos dez anos lembrando-se da vida de outrora, revivendo os passeios com as crianças, recordando o ombro do marido, sentido cheiro de bolo de chocolate. No entanto, os anos passaram e cada um desses infindáveis dias, criaram no seu corpo alguns detalhes de sua passagem.
Levantou-se novamente e olhou o espelho. Tentou reconhecer aquela pessoa refletida, buscou alguma nota de alegria ou mesmo de tristeza, olhando atentamente, nada sentia. Esses sentimentos tão humanos também a abandonaram, somente o vazio, um profundo abismo que se formara dentro de si. Resignadamente, levantou-se e comunicou a sua decisão ao único filho que ainda restava:
- Não vou fazer nenhum tratamento.
Já eram quatro horas, abriu a janela, depositou a cabeça no travesseiro e adormeceu tranquila.

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