terça-feira, 27 de setembro de 2011

Segue-se o abandono

Era um casebre antigo, paredes rachadas, chão batido, cortinas que separavam três minúsculos cômodos. Lá fora, estendia-se um grande jirau onde reluziam algumas panelas lavadas com bucha e areia.
Neste ambiente rústico, moravam Carmem e Lúcio. Unidos mais pela necessidade do que por qualquer outro sentimento. Ela, depois que completara dezoito anos, teve que sair do abrigo. Quanto a ele, após a morte da mãe e da irmã, necessitava de alguém que lhe cosesse as camisas puídas e fizesse-lhe a marmita, acomodavam-se um ao outro.
Carmem tinha um espírito calmo como suas ações ao arrumar o barraco onde moravam. Os afazeres sempre feitos vagarosamente, estendiam-se durante toda a manhã e um pouco da tarde, mas ainda sobrava um tempo em que gastava fazendo infindáveis trancinhas de crochê.
Lúcio era dono de um espírito livre, um homem aventureiro e possessivo, pobre e ambicioso. Tentava sempre estar com pessoas influentes e não passava a ninguém um espírito subserviente, era um pobre diabo almejando as grandezas do Parnaso.
O tempo livre passava elaborando projetos mirabolantes que culminariam em riqueza fácil e certeira. A honestidade nascera com ele, no entanto, a vida foi adequando-a e por fim, sobrou apenas uma mirrada haste de decência. “Os fins justificam os meios” – repetia esse jargão como se fosse um achado de um grande filósofo. A vida seguia-se com alguns atropelos mas Carmem resistia aos dissabores.
Lúcio chegava a cada dia mais tarde, tratava a esposa, ora com indiferença, ora com animosidade; até que um dia, voltou para casa somente no domingo à tarde. Não havia panelas no jirau e não encontrou o crochê em cima da mesa como a esposa normalmente deixava quando se dedicava a outra atividade. Parecia tão óbvio, mas os olhos teimavam em não enviar a mensagem ao cérebro: ela fora embora.
Incrédulo, abriu a cômoda, o pequeno armário, enquanto um gosto acre saía pela garganta em uma saliva pegajosa que engolia novamente, sentiu-se um porco sendo sacrificado. Correu aos vizinhos que mal levantaram os olhos para lhes informar que a viram sair, sorrindo, com uma maleta. Não havia endereços, nem amigos a quem pudesse recorrer.
Depois de algumas horas, o abandono como uma praga, já havia tomado conta do seu corpo e a ideia do sorriso que a mulher supostamente exibia ao deixar o barraco corroía-lhe as vísceras.

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